O simples fato de gerar um filho não faz de ninguém um pai ou uma mãe
A adoção é uma modalidade de filiação inferior? Gerar um filho faz de alguém pai ou mãe? É possível criar um filho que foi gerado sem nunca adotá-lo como filho? Ou cria-se um filho simplesmente porque foi gerado por alguém que não tem coragem de abandoná-lo? E o adotado, é alguém digno de pena? Questões como essas fazem parte de meu cotidiano pessoal e profissional. De um lado, sou questionada acerca disso por causa das experiências de adoção em família; por outro, trabalho com pessoas inférteis que não conseguem gerar filhos, mesmo com todas as possibilidades da medicina de hoje.
A adoção é uma escolha. Pode até ser uma escolha com alguma motivação diferente da que deveria ser – adotar para conceder paternidade a uma criança que foi gerada por outros. Mas, trata-se sempre de uma escolha. Por isso, aqueles que passam por todos os requisitos legais exigidos também têm a liberdade de desistir antes de serem considerados aptos a assumir a paternidade de uma criança – e, mesmo quando já ultrapassaram essa etapa e são chamados para conhecer alguma criança disponível para adoção, ainda podem desistir.
É possível também desistir de uma criança que foi gerada no próprio útero. Alguns são abortados antes de nascer; outros, abandonados logo que vêm à luz. Em casos extremos, recém-nascidos podem ser até mortos por aqueles que os geraram. Nestas três situações, valores sociais, morais e religiosos são ignorados por quem os transgride, além das leis penais vigentes no país, que criminalizam tais práticas. Isso sem falar na violência contra a própria consciência de que as pratica. Todavia, uma coisa é certa: o simples fato de gerar um filho não faz de ninguém um pai ou uma mãe. É possível gerar, criar, mesmo assim, nunca – mas nunca, mesmo –, adotar, afetivamente, o próprio filho. Toda criança, de fato, precisa ser adotada pelos pais biológicos; e, na ausência destes, por outros pais.
É preciso desfazer o engano preconceituoso de que toda criança adotada trará problemas sérios para seus pais. Há bem pouco, no trágico assassinato do bispo anglicano Robinson Cavalcanti, uma manchete acrescentou “filho adotivo” nas características do acusado pelo crime. Curiosamente, nunca se coloca que determinado criminoso que executa os pais é seu “filho biológico”, ainda que seja este o caso. Parece bem claro que a menção de que o filho é adotivo, nesse tipo de contexto, revela a crença de que o crime poderia ter como causa a adoção.
Não temos como avaliar as escolhas que as pessoas podem fazer na vida adulta. É claro que pais e mães – biológicos ou adotivos – falham. E falham porque todos os pais são humanos e possuem um lado caído, assim como seus filhos, sejam os gerados pelos pais biológicos ou os filhos por adoção. Naturalmente, é impossível conhecer que tipo de comportamento e modo de agir terão no futuro. Pais e filhos jamais serão perfeitos. Mas estou certa de que uma criança que experimenta a aceitação e o amor dos pais, biológicos ou não – mesmo que já tenha sofrido alguma rejeição, seja lá de que maneira for –, têm a possibilidade de superar a dor e se tornar também amorosa.
Geralmente, os amigos de familiares que escolhem adotar uma criança cometem dois erros. No primeiro, olham a criança como uma coitada que encontrou um espaço naquela família. Porém, uma criança adotada não é uma coitadinha. Ela pode até ter sido vítima de pais irresponsáveis ou pessoas insensíveis; pode ter passado por toda sorte de maus tratos e privações. Sim, pessoas adotadas podem carregar na própria história muitas carências; mas toda e qualquer vivência, na experiência humana, pode cooperar com o jeito dela de ser. E, em muitos casos, o que poderia ser tão ruim acaba por contribuir para que aquela criança, que logo será um jovem e um adulto, tenha uma vida livre de danos para si mesma e para os outros. Um segundo erro é a atitude de ver a criança adotada como alguém de muita sorte. Ora, se quem é adotado tem sorte, a família que adota também tem. A criança encontrou a família, e a família encontrou a criança – e os dois lados envolvidos vão experimentar sentimentos prazerosos e doloridos na caminhada da interação entre pais e filhos.
Há esperança para todos os que se envolvem ou são envolvidos na maravilhosa relação de adoção. Davi, rei de Israel, sabia disso muito bem. Por isso, foi capaz de afirmar, no Salmo 27.10: “Ainda que meu pai e minha mãe me desamparem, o Senhor me acolherá”.
Esther Carrenho
*Revista: Cristianismo Hoje, Seção Vida Plena, Edição 30-Ano 5
Parabéns Esther pelo artigo! Que nossas atitudes como cristãos possam contribuir para transformar a realidade da adoção. bjs
Que assim seja, Edmea. Abração!